in Revista Brasileira de Direito Processual Penal
Clemência no Tribunal do Júri? Reflexões derivadas do argumento a fortiori trazido no voto vogal do Min.
Resumo
O artigo busca responder a questão da legitimidade da absolvição por clemência no júri a partir da análise crítica do argumento a fortiori que sustenta sua inadmissibilidade no julgamento de crimes hediondos dolosos contra a vida, pois se nem ao Parlamento seria dado abdicar da punição muito menos estaria o Tribunal do Júri autorizado a tanto. Levanta-se a hipótese de que o Tribunal do Júri, de fato, não seja hierarquicamente inferior ao Parlamento, de modo que as premissas do argumento a fortiori estariam equivocadas. Procede-se a uma revisão bibliográfica baseada no funcionalismo penal a respeito da natureza jurídica do Tribunal do Júri no ordenamento jurídico e suas consequências dogmáticas, de modo a verificar a hipótese levantada. Observa-se que o júri consiste numa garantia institucional titularizada pelo Povo, o que permite concluir que ele é hierarquicamente superior ao Parlamento e que a clemência deve, então, ser vista como uma renúncia soberana à pena.
Main Text
INTRODUÇÃO
Bons argumentos não são apenas os que convencem, mas também aqueles que nos fazem, de fato, refletir. Eles abrem margem para que os debates dos quais participam sejam colocados nos devidos lugares e outros argumentos floresçam. É o caso do argumento a fortiori trazido pelo Min. Edson Fachin em seu voto-vogal elaborado para o julgamento do ARE 1225185, tema/RG 1.087. O problema jurídico a ser respondido é o da admissibilidade da chamada clemência no Tribunal do Júri, instituto que confere aos jurados o poder de absolver o réu ainda que as provas dos autos manifestamente demonstrem tanto a materialidade e autoria do delito, quanto seus elementos: tipicidade, antijuridicidade e culpabilidade. Posicionando-se contrariamente ao reconhecimento sem ressalvas desse instituto, o referido Ministro finaliza seu voto trazendo o seguinte argumento: “Ora, crimes hediondos, como dispõe a própria Constituição Federal, são insuscetíveis de graça ou anistia e, a fortiori, de clemência a cargo do Tribunal do Júri”.
Noutras palavras: se nem ao Parlamento é dado abdicar da punição a um crime hediondo, muito menos o Tribunal do Júri teria tal poder. Por trás dessa lógica reside, portanto, a ideia de superioridade hierárquica do Parlamento, representante do Povo por excelência, sobre outras instituições sociais. Trata-se de um caminho razoável. Caso o tomemos como premissa, a conclusão lógica que se impõe é exatamente aquela à qual o Min. Fachin chegou: o Tribunal do Júri não pode renunciar à pena por não ter legitimidade para tanto. E mais, ao trazer a ideia de superioridade do Parlamento - em conjunto com a sua proibição de renúncia à pena -, o Min. Fachin reposiciona dogmaticamente a discussão sobre a clemência. Ela sai do âmbito da Teoria do Delito - não raro colocada como o reconhecimento de uma causa supralegal de exclusão de culpabilidade2 -, e passa a inserir-se, antes, nos campos da Teoria Constitucional - debates sobre o Povo e seus representantes - e da Teoria dos Direitos e Garantias Fundamentais - debates sobre sua natureza, titularidade e possibilidades de disposição. É a esse insight que o argumento a fortiori do Min. Fachin nos permite chegar: a clemência é um ato de abdicação da pena, não uma exclusão da culpabilidade, que nem o representante maior do Povo está constitucionalmente autorizado a praticar.
Um segundo caminho que podemos tomar como premissa, e que tentarei defender no presente artigo, é questionar essa pretendida superioridade hierárquica do Parlamento frente ao Tribunal do Júri. Noutras palavras, buscarei, adotando uma metodologia funcionalista,3 sustentar a hipótese de que a intuição do senso-comum de que o Tribunal do Júri é o tribunal do Povo foi acolhida pelo Constituinte de 88 (I) para, posteriormente, analisar as consequências dogmáticas dessa percepção para reconhecimento do instituto da clemência (II).
1. O QUE É O TRIBUNAL DO JÚRI PARA A CONSTITUIÇÃO?
Os dois caminhos apontados na introdução são plausíveis e razoáveis. A decisão por seguir um ou outro é, portanto, uma opção político-criminal.4 As possibilidades de contribuição da ciência jurídica, nesse contexto, dividem-se em duas dimensões: (a) analisar criticamente qual opção seria mais conveniente num ordenamento ideal; ou (b) investigar qual foi a opção política do Constituinte. A primeira dimensão é relevante para auxiliar as escolhas feitas pelo Constituinte; a segunda, para colaborar com a interpretação constitucional, o que é o nosso caso. Meu argumento tentará mostrar que, ao elevar o reconhecimento da instituição do Tribunal do Júri à condição de norma fundamental (CF 5º XXXVIII), o Constituinte optou por compreendê-lo como manifestação popular direta, como tribunal do Povo, de quem o poder emana (CF 1º § único).
1.1. O JÚRI COMO GARANTIA INSTITUCIONAL
O Tribunal do Júri não precisa ter um status jusfundamental.5 Ele não decorre daquilo que se poderia chamar de direito natural, nem tampouco é um direito fundamental em sentido material,6 como a vida, a integridade física, a liberdade de consciência e outros direitos individuais clássicos. Importante para nós, porém, é que a Constituição de 1988 conferiu-lhe natureza jusfundamental. Trata-se de um ato de livre vontade do Constituinte que, independentemente de ser uma liberalidade, tem significado:7 uma norma jusfundamental é, antes de tudo, uma pretensão oponível aos Poderes Públicos.8 Desse fato é possível deduzir uma conclusão tão simples quanto evidente: se o júri é uma garantia fundamental,9 seu titular, por lógica, não pode ser o Estado.
A pergunta sobre a titularidade dessa garantia permanece, no entanto, em aberto. Uma primeira aproximação apontaria que a instituição do júri serviria aos interesses do arguido. Dessa concepção parecem advir argumentos, como o defendido por Streck, no sentido de que o Tribunal do Júri, por ser uma garantia constitucional,10 não poderia se virar contra o réu.11 O júri, assim, seria um direito do acusado, em consonância com a comum associação entre direitos fundamentais e o indivíduo (ou a dignidade da pessoa humana). Tal visão parece difícil de aceitar. Primeiro, pois não há garantias de que o julgamento por um corpo de jurados beneficiará o réu: trata-se de uma questão meramente empírica e não sei dizer se os acusados do caso Nardoni não teriam mais chances de absolvição caso não fossem submetidos ao julgamento por leigos, por exemplo. Segundo, e muito mais importante, é que, fosse o Tribunal do Júri um direito fundamental do acusado, a ele caberia, por força de sua autonomia, o direito de não exercitar tal garantia constitucional.12 Ocorre que - diferentemente da Constituição Americana, que, na sua Sexta Emenda, vincula expressamente o júri ao acusado, aceitando a possibilidade de renúncia desse direito; e da Constituição Portuguesa, que, ao menos em parte,13 garante ao arguido o direito de requerer, ou não, o julgamento pelos pares (CRP 207º 1) -, a nossa Constituição atribuiu competência absoluta ao Tribunal do Júri (CF 5º XXXVIII d), retirando-o da esfera de disponibilidade do acusado. Uma tentativa de construir uma teoria da indisponibilidade do direito do réu ao júri muito provavelmente dependeria de argumentos paternalistas que dificilmente encontrariam guarida num ordenamento liberal.14 Mais coerente entender que, no ordenamento brasileiro, o Tribunal do Júri não foi instituído como um direito do acusado.15
A outra forma de associar o Tribunal do Júri a um direito individual seria compreendê-lo como um direito da vítima. Em que pese a recente e crescente inserção das considerações sobre a vítima no pensamento penal,16 tal esforço não parece compatível com o atual desenho constitucional brasileiro.17 Primeiro, pois parece difícil fundamentar um direito do ofendido de ver o acusado ser julgado por um tribunal menos propenso a uma aplicação técnica das normas jurídicas. Ademais, os dois argumentos que refutam a ideia do júri como um direito do réu permanecem intocados: nem há garantias de que o Tribunal do Júri será mais benéfico aos interesses vitimais, nem parece haver justificativa para que um tal direito não esteja abrangido pela esfera de disponibilidade do afetado pelo crime. Não há, de fato, impedimentos normativos para que o ordenamento venha a ser alterado para tornar-se compatível com um direito da vítima à satisfação penal de seu sofrimento:18 o Tribunal do Júri, em que pese ter natureza de garantia fundamental, não é cláusula pétrea, pois apenas os direitos e garantias individuais o são (CF 60 §4º IV).19 Atualmente, porém, essa compatibilidade não existe.
O insucesso das tentativas de vincular a garantia fundamental ao Tribunal do Júri a um indivíduo mostra as limitações de uma concepção exclusivamente individualista dos direitos fundamentais. A classificação do direito ao júri como uma garantia institucional - ou seja, como uma proteção constitucional de instituições consideradas fundamentais à sociedade e normas objetivas de organização social20 - parece mais adequada: em que pesem seus ainda precários reconhecimento e desenvolvimento na ciência constitucional,21 parece relativamente consensual afirmar que há instituições constitucionalmente tuteladas contra o Legislador Ordinário, ainda que haja controvérsias a respeito da possibilidade de extração de um direito subjetivo a partir delas.22
1.2. O JÚRI COMO MANIFESTAÇÃO DIRETA DO POVO
O reconhecimento do júri como uma garantia institucional parece, de certa forma, esvaziar a questão sobre sua titularidade. Ocorre que, sem uma resposta a essa pergunta, também não há como saber se o Parlamento é ou não superior ao Tribunal do Júri. Creio que uma breve revisão de uma doutrina constitucional de feição contratualista 23 pode nos ajudar a entender melhor, ao menos algumas garantias institucionais e, ao mesmo tempo, a resolver esse impasse. Entendendo a Constituição como o contrato social no qual o Povo abdica de parte de suas liberdades para (re)fundar o Estado,24 os direitos fundamentais em geral consistiriam em ressalvas ao novo poder estatal, em espaços livres de intervenção pública. Nada impede, porém, que o Povo inclua, nesse rol de ressalvas, mais do que somente direitos individuais propriamente ditos. É, por exemplo, perfeitamente possível que o Povo, no pacto social de gênese - ou, no caso da Constituição de 88, de refundação - do Estado, reserve para si certas instituições que repute importantes.
Defendo que seja esse o caso do Tribunal do Júri. O Poder Constituinte Originário, quando da elaboração da nova constituição, optou como que por retirar os julgamentos dos crimes dolosos contra a vida da esfera estatal, garantindo ao Povo o poder de julgar diretamente tal categoria capital de delitos. O Tribunal do Júri é, assim, uma ressalva do Povo frente ao Estado;25 uma afirmação de que, em relação a certos crimes capitais, é ele quem vai analisar o caso concreto e decidir sobre a necessidade e conveniência da imposição de uma pena, convergindo com a intuitiva definição de Tribunal do Júri como tribunal popular, tribunal do Povo, de quem todo o poder emana (CF 1º § único).26 Dessa lógica é possível deduzir justificações tanto para a soberania dos vereditos (CF 5º XXXVIII c), quanto para a fixação da competência absoluta (CF 5º XXXVIII d) do Tribunal do Júri. Tal concepção também explica a ausência do Tribunal do Júri no rol constitucional de órgãos do Poder Judiciário (CF 92),27 bem como a inclusão do §1º no art. 9º do CPM, feita em 2017, que afirmou a competência do Tribunal do Júri em crimes dolosos contra a vida praticado por militares.28
Levanta-se, com isso, uma interessante objeção a pretensões de imposição de um “controle mínimo de racionalidade” por parte do Judiciário, ao qual o Min. Fachin faz referência em seu voto: ao tomar o veredito do júri como uma expressão direta do Povo, tem-se a inversão de um didatismo estatal que - num criticável elitismo democrático, caracterizado pela desconfiança em relação ao Povo29 - atribui ao Estado a tarefa de educar e conduzir a população, colocando as instituições democráticas acima do demos, como se elas tivessem a legitimidade para “empurrar a história”30 na direção de sua preferência. Compreender o júri como tribunal do Povo significa reverter esse fluxo didático: o Povo não mais (apenas) aprende com o Estado ou com as instituições democráticas, mas, antes, os ensina suas virtudes e valores.31 Reverte-se, em suma, a relação de desconfiança,32 prevalecendo a ideia de que as instituições também podem ser melhoradas pelo Povo, ao invés de apenas melhorá-lo.33
A renovação da perspectiva do júri como tribunal do Povo está, por óbvio, sujeita a críticas de diversas ordens. A mais fundamental de todas reside na própria ausência de definição do conceito de Povo. Sempre invocado para sustentar as mais variadas teses e legitimar distintas ideologias, trata-se de um conceito que carece de univocidade e cujo manejo, portanto, é, no mínimo, complicado.34 Nada disso afasta a necessidade de seu emprego nas discussões constitucionais, não só por causa de seu papel como questão fundamental da democracia,35 mas sobretudo porque a Constituição faz uso do termo, colocando-o como fonte de todo o poder legítimo (CF 1º, § único).
Não pretendo aqui discutir se o Povo é uma realidade natural ou uma ficção jurídica36 nem tentar esboçar uma definição do que é Povo, pois haveria, nessas empreitadas, um sério risco de “encher de vãs palavras muitas páginas e de mais confusões as prateleiras,”37 o que não seria conveniente para solucionar um debate mais concreto como a questão do júri. Mais sensato parece encontrar quais figuras representam a concretização constitucional do conceito de Povo, isto é, a quais figuras o Constituinte atribuiu o poder de expressar a vontade direta do Povo. O eleitorado (CF 14, caput), por exemplo, configura uma das variações mais clássicas e intuitivas das concretizações constitucionais do Povo. Nesse contexto, e retomando as já tecidas considerações a respeito do júri como garantia institucional oponível aos Poderes Públicos, há bons motivos para crer que o Constituinte optou por ver no Tribunal do Júri uma dessas concretizações.38
Também é possível opor à noção de tribunal popular a crítica à amostragem insuficiente do júri. A rigor, a ideia de amostragem guarda uma certa conexão com a de representatividade, de modo que já haveria uma certa contradição em sequer empregá-la numa discussão a respeito de uma concretização constitucional do conceito de Povo. Mas a crítica que aqui formulo resume-se na seguinte ideia: a associação entre a figura idealizada do Povo e a figura concreta do corpo de jurados seria inviável, haja vista que um grupo de apenas sete pessoas39 seria excessivamente pequeno para corresponder à vontade direta do Povo.40
A primeira resposta a essa objeção reside na possibilidade de reformar a composição do júri. A Constituição, ao tratar do tema, não determinou uma quantidade específica de jurados, delegando expressamente ao Legislador Infraconstitucional a tarefa de organizar o Tribunal do Júri (CF, 5º, XXXVIII), o que permite uma correção, ao menos parcial, desse problema. Deve-se, ademais, notar que tal crítica está localizada num plano pré-positivo. Isto é, ainda que fosse aceita, ela afetaria apenas a legitimidade da opção constitucional - o que, de fato, não é pouca coisa -, mas não seria capaz de afetar nem a sua existência, nem a sua cogência. Ainda mais importante, é razoável reconhecer uma inevitável imperfeição das concretizações constitucionais do conceito de Povo. Por exemplo, se, de fato, o eleitorado consiste numa amostragem mais ampla do que o Tribunal do Júri, a sua legitimidade é, noutra dimensão, maculada pela tendência de estímulo à formação de classes profissionais de políticos,41 o que, por conseguinte, abre margem para a inserção de interesses particulares - seja pela via econômica, seja por outras formas de poder - na formação da vontade democrática. Por sua vez, a insuficiência amostral do Tribunal do Júri é compensada tanto pela menor vulnerabilidade à infiltração de interesses pessoais na formação da vontade quanto pela sua randomização advinda do sistema de alistamento (CPP, 425 e ss.) e sorteio42 (CPP, 432 e ss.) de jurados - que também está sujeito a críticas, igualmente sanáveis, relativas a uma insuficiente aleatorização.43 Não desconheço que existam imperfeições mais incorretas que outras,44 o que afirmo é que, para além das questões sanáveis pela já aventada possibilidade de reforma, o problema amostral do júri não é tão grave a ponto de comprometer a sua correspondência à vontade popular, pois é condição para o saneamento de problemas de outras concretizações constitucionais do Povo.
A última crítica à concepção do júri como tribunal do Povo que tratarei reside no seu risco de nos conduzir a uma espécie de feudalismo moral.45 Tal alteração implicaria, em última análise, o fim do Estado como hoje o conhecemos, acarretando uma desestruturação da ordem social capaz de deflagrar graves retrocessos relativos aos índices de violência observados na espécie humana.46 Nessa linha, legitimar o Tribunal do Júri como vontade direta do Povo, retirando-o da esfera de controle e de uniformização das instâncias democráticas, poderia representar um passo para a desintegração do tecido social que compõe o Estado, pondo em perigo a indissolubilidade da unidade nacional (CF, 1º, caput).
A resposta que se dá ocorre em dois sentidos relativamente interconectados. Primeiramente, a própria instituição do júri estaria ainda sujeita a uma certa heterogeneidade sociomoral,47 o que, se não afasta, ao menos mitiga a aproximação com um dos extremos de um longo espectro - que vai desde a homogeneização ético-social forçada até a feudalização moral -, a ponto de não mais significar uma ameaça relevante à unidade nacional. Mais importante parece reconhecer que, dentro desse espectro, há um espaço de livre movimentação político-constitucional que autoriza uma opção por um modelo mais ou menos centralizado sem que isso represente algum perigo à existência do Estado. Trata-se de uma lógica similar à da distribuição de competências e atribuições entre os entes federativos: nos Estados Unidos, por exemplo, os estados são competentes para legislar em matéria penal, ao passo que, no Brasil, tal competência é privativa da União (CF, 22, I). Nenhum desses diferentes desenhos constitucionais, contudo, consiste em riscos graves à unidade nacional dos seus respectivos países. Do mesmo modo, adotar uma concepção do Tribunal do Júri como expressão direta do Povo não parece ter o condão de inaugurar um temido feudalismo moral.
2. O INSTITUTO DA CLEMÊNCIA NO JÚRI
Feita a devida análise a respeito da natureza popular do Tribunal do Júri, cabe, agora, examinar as repercussões dessas considerações para o reconhecimento do instituto da clemência pela ciência penal. Noutras palavras, faz-se necessário discutir a possibilidade e formatação da clemência, bem como suas circunstâncias.
2.1. A CLEMÊNCIA COMO RENÚNCIA SOBERANA À PENA
As tentativas de enquadramento dogmático da clemência enveredam-se, não raro, pela análise do ilícito culpável.48 Cuidam, em geral, de analisar se uma absolvição manifestamente contrária às provas dos autos decorreria de uma excludente supralegal de culpabilidade, construindo, por vezes, posicionamentos com base em doutrinas que orbitam o conceito de culpabilidade, como o chamado princípio da desculpa defendido por Palma49 ou a categoria dogmática da responsabilidade sustentada por Roxin e Greco.50 Defendo que uma concepção do júri como tribunal popular, se levada a sério, põe esse caminho em xeque. Procurar uma resposta para a natureza da clemência na dogmática do delito significa buscar na própria conduta criminosa uma justificação para a sua não punição. É tentar manter a análise exclusivamente no plano dos atos de conhecimento, negando ao Tribunal do Júri - concretização constitucional do Povo - a prática de atos de vontade. A vontade de simplesmente não punir.
Tal visão faria sentido caso entendêssemos o júri como ente estatal e não como concretização constitucional do conceito de Povo. Um ato de vontade do Estado - como a abstenção de impor uma sanção a priori legítima que o Povo, seu mandante, entende cabível - requer uma justificativa perante seus representados. É preciso apresentar razões que os convençam, é preciso dar-lhes satisfação por meio de argumentos. Ao entendermos o Tribunal do Júri como manifestação direta do Povo, porém, tal necessidade desaparece. A clemência não é, portanto, o reconhecimento de uma ausência de culpabilidade no caso concreto, pois ela é, antes, uma renúncia soberana à pena, um ato de vontade popular, que - motivado pelas mais variadas causas - abdica da imposição da punição que é infligida em seu nome. E, como ato de vontade soberana, a clemência não precisa de argumentos justificantes, pois emitido exatamente por aqueles a quem a justificação seria destinada: o Povo, concretizado, segundo as normas constitucionais, na figura do Tribunal do Júri. Em suma, a relação de representação exige somente que o representante explique ao representado o exercício de seu poder. O contrário não ocorre, pois o representado é soberano. Não é por outro motivo que, numa eleição, o eleitor não precisa justificar o seu voto e não é por outro motivo que a Constituição de 1988 garantiu a soberania dos vereditos do Tribunal do Júri (CF, 5º, XXXVIII, c).51 A partir desse fundamento é possível legitimar a redação legalmente determinada do chamado quesito genérico (CPP, 483, §2º) - “O jurado absolve o acusado?” -, em substituição a questões específicas de caráter mais técnico.
Quanto à classificação dogmática da clemência como renúncia soberana à pena, convém um parêntese para um breve aprofundamento. A renúncia soberana à pena é uma espécie do gênero causa de isenção de pena (Strafbefreiungsgründe). Nessa categoria são incluídos os benefícios jurídicos que, a despeito de não afetarem a tipicidade, ilicitude e culpabilidade de uma conduta, retiram a punibilidade de seu autor.52 Dentro dela, temos dois subgrupos: as causas de exclusão de pena (Straf- ausschließungsgründe), que abrangem as circunstâncias, anteriores ou concomitantes ao fato punível, capazes de isentar um indivíduo da sua punição; e as causas de não-aplicação da pena (Strafaufhebungsgründe), que também compreendem circunstâncias capazes de afastar a punição de um indivíduo, mas que tenham ocorrido posteriormente à prática do fato punível. 53 No caso da clemência, trata-se, como dito, de uma renúncia soberana à pena por parte do seu titular último, o povo. Essa renúncia, por óbvio, só ocorre no momento do julgamento, sendo, portanto, classificável como uma causa de não-aplicação da pena. Considerando as causas de não-aplicação de pena mais tradicionais - a prescrição e as diferentes formas de perdão54 -, a clemência possui a peculiaridade de, mais do que não ser um ato estatal, ser um ato de vontade popular direta. Por essa razão, a classifiquei como uma renúncia soberana.
Essa constatação nos conduz a uma conclusão imperativa, mas que, diante de sua contundência, requer certa coragem para afirmá-la. Sendo a clemência um ato de renúncia soberana à pena, deduz-se a impossibilidade de controlar as motivações que a fundamentaram. Tal visão pode, inclusive, ser sustentada pela garantia constitucional ao sigilo das votações no Tribunal do Júri (CF, 5º, XXXVIII, b).55 Daí decorre a admissibilidade de teses moral e juridicamente repulsivas, como a erroneamente chamada legítima defesa da honra,56 por parte do júri57 - com a ressalva de que ele não pode aceitá-la enquanto excludente efetiva de ilicitude, mas apenas como motivo relevante para a renúncia da pena.58 Noutras palavras, o argumento da defesa da honra - e teses similares - pode afastar a imposição da pena, a punibilidade, mas não tornar um ilícito justo.59
Uma solução para dificultar a ocorrência de tais situações seria vedar à defesa o direito de sustentar tais argumentos. Parece difícil, porém, fundamentar, como pretende o Min. Dias Toffoli na ADPF 779/DF, uma nulidade processual ou uma proibição puramente jurídica de levantar tal espécie de tese defensiva, considerando a garantia constitucional da plenitude de defesa (CF, 5º, XXXVIII a). A solução desse impasse residiria, talvez, na inserção de tais limitações no plano da ética advocatícia,60 por meio do reconhecimento de um dever do defensor de não apelar a argumentos moral e juridicamente repulsivos - dever talvez derivável dos art. 31 ou 34, VI ou XXV do EAOAB ou talvez somente fundamentável de lege ferenda (o que demonstra a necessidade de um estudo mais profundo e específico).
2.2. AS LIMITAÇÕES DO PODER DE DISPOSIÇÃO DO JÚRI SOBRE A PENA
A concepção que ora defendo não é completamente nova. Creio apenas que suas bases ainda não tenham sido devidamente explicitadas e levadas a sério, o que acabou impedindo - ou ao menos dificultando - que extraíssemos as suas consequências da forma mais correta. É a partir dessa renovada fundamentação do Tribunal do Júri que se torna possível responder ao que chamo de argumento do cavalo de Tróia trazido por Trindade e Streck: a aceitação da clemência - por eles descrita como o “sim, porque sim” - esconderia consigo, tal qual um presente de grego, a necessidade de também acolhermos a condenação sem fundamentos - a que eles se referem como o “não, porque não”.61 Não há insensatez nessa lógica, sobretudo por ela guardar uma certa conexão com o princípio da paridade de armas,62 que, por sua vez, pode ser derivado do princípio da igualdade (CF, 5º, caput).63 No plano do Direito vigente,64 trata-se da principal objeção à clemência no júri, pois não parece haver, dentro do ordenamento brasileiro, outro óbice ao reconhecimento do instituto.65
O erro do argumento do cavalo de Tróia reside em ignorar66 não apenas a origem democrática do Tribunal do Júri, mas sobretudo a necessária distinção entre os princípios da democracia e do Estado de Direito (CF, 1º, caput).67 Enquanto a ideia de Estado de Direito vincula-se às de direitos fundamentais, constitucionalidade e juridicidade, associando-se a imperativos de justiça,68 o princípio democrático está conectado ao conceito de Povo e soberania popular, ligados a questões de poder e próximos da noção de vontade geral.69 Em última análise, trata-se da clássica relação de tensão entre os interesses coletivos (princípio democrático) e os interesses individuais (princípio garantístico,70 sobretudo na dimensão de respeito aos direitos fundamentais), que permeiam qualquer discussão sobre a organização social. O Estado Democrático de Direito é, assim, o modelo de Estado que tenta conciliar essas duas forças fundantes71 - justiça e poder; indivíduo e coletivo - que, se nem sempre são antagônicas, não deixam de, em diversos momentos, se contrapor uma à outra.72 Distinguir esses dois princípios nos permite uma melhor visualização dos argumentos que estão em jogo nesses conflitos, bem como seu melhor manejo.
O Tribunal do Júri, dessa forma, significa o interesse do Povo de gerenciar a imposição da pena. A soberania dos vereditos (CF, 5º, XXXVIII, c), para ser uma real soberania, pressupõe o poder de renúncia dessa imposição. Ela incide, porém, somente sobre aquilo de que o Povo dispõe: o poder de punir. Num paralelo, a soberania está para o Povo assim como a autonomia está para o indivíduo: ambas significam a legitimação do exercício do autogoverno, e ambas são limitáveis pela existência de outros autogovernos igualmente legítimos. O titular desse poder de punir, portanto, não está autorizado a decidir sobre aquilo que nunca lhe pertenceu:73 os direitos fundamentais do indivíduo, dentre os quais figura o direito ao devido processo legal (CF, 5º, LIV) - e, no plano de fundo, a própria liberdade de locomoção (CF, 5º, XV).74 E, diga-se, não basta ao conceito de devido processo legal que o processo esteja submetido a um regramento editado pelo Parlamento. Antes, é necessário que esse regramento seja devido, isto é, justo.75 Certamente a discussão sobre o que é justiça é muito maior do que o escopo do presente texto,76 porém é possível afirmar com segurança que a condenação sem provas - ou, pior, contrária às provas - consiste numa injustiça. Violaria, portanto, o chamado fair trial,77 corolário do devido processo legal.
É também do reconhecimento desse embate entre o princípio do Estado de Direito e o fundamento democrático do Tribunal do Júri que se extrai a justificação para a garantia constitucional da plenitude de defesa nos processos de competência do júri (CF, 5º, XXXVIII, a),78 algo que vai além da usual ampla defesa garantida em todos os processos judiciais e administrativos (CF, 5º, LV).79 Tal percepção é relevante não apenas para afastar o argumento do cavalo de Tróia, mas também para legitimar um direito de clamar expressamente pela clemência dos jurados.80
Se levada a sério, a plenitude de defesa no Tribunal do Júri, sobretudo em conjunto com a garantia de um devido processo legal, nos permite, para além de questões relativas à figura da clemência, questionar a própria constitucionalidade da vedação a uma segunda apelação nos casos em que o corpo de jurados novamente condenam o réu de forma manifestamente contrária81 às provas dos autos (CPP, 593, §3º). Uma condenação sem provas permanece, afinal, uma condenação sem provas. A confirmação, por si só, de um juízo condenatório que se oponha de forma manifesta às provas produzidas não é capaz de torná-lo justo, pois a mera repetição não é critério de justiça. Um Estado que aceita a proibição sem ressalvas da segunda apelação no júri, portanto, aceita também a possibilidade de retirar a liberdade de inocentes por mero exercício do poder popular. É, ainda, um Estado Democrático, mas não mais um Estado de Direito.
Uma solução para preservar a constitucionalidade do dispositivo talvez consistisse em acolher a possibilidade de absolvição do réu nos casos de procedência da apelação, já que haveria um reconhecimento expresso, por parte do Judiciário, de que as provas produzidas contra o acusado não são capazes de sustentar uma condenação. Seria, também, uma forma de exigir responsabilidade do Povo por sua decisão. Caso ele não se atenha ao dever de julgamento justo - o que seria um abuso do poder de punir -, perde o direito de julgar. Seria uma conciliação entre os princípios democrático e garantístico.82 A fundamentação legal para tanto possivelmente residiria numa interpretação a contrario sensu da própria vedação à segunda apelação. O Tribunal de Justiça, ao identificar uma contrariedade manifesta às provas, teria, a rigor, duas opções: ou absolver o réu ou submetê-lo a um novo júri. Ocorre que esse novo júri seria, nesse desenho, incompatível com a garantia constitucional da defesa plena (CF, 5º, XXXVIII, a), já que não haveria a possibilidade de apresentar recurso contra uma segunda condenação contrária às provas, isto é, contra uma condenação injusta. Restaria ao Tribunal de Justiça, portanto, apenas a alternativa absolutória. A segunda apelação seria, então, vedada, pois caberia ao Tribunal de Justiça apenas reafirmar a vinculação do júri às provas ou absolver o réu. Teríamos algo como uma despronúncia tardia, um novo juízo de impronúncia, que talvez não tarde tanto a ponto de falhar. Tal sugestão, contudo, teria que ser discutida mais a fundo, sobretudo a sua compatibilidade com a soberania do Tribunal do Júri (CF 5º XXXVIII c), o que não cabe no presente texto.
CONCLUSÕES
O debate sobre a clemência no Tribunal do Júri deve partir de análises no âmbito das Teorias Constitucional e dos Direitos e Garantias Fundamentais. O entendimento do júri como tribunal do Povo é, nesse contexto, fruto de uma opção político-criminal de conferir-lhe status de norma jusfundamental, tornando-o uma pretensão oponível aos Poderes Públicos.
Dentro do atual desenho constitucional brasileiro, porém, não é possível entender o Tribunal do Júri nem como um direito do acusado, nem como um direito da vítima, restando a possibilidade de compreendê-lo como uma garantia institucional. Numa doutrina constitucional de feição contratualista, o júri pode, então, ser visto como uma ressalva do Povo frente ao Estado, uma contraposição a um elitista e desconfiado didatismo estatal.
As possíveis objeções relativas à ausência de uma definição do conceito de Povo podem ser respondidas com o recurso à ideia de que o Tribunal do Júri se trata de uma de suas formas de concretização constitucional. Igualmente, às críticas a respeito de uma amostragem insuficiente do júri opõe-se o argumento da inevitável imperfeição das concretizações constitucionais do conceito de Povo. Por fim, receios de que o Tribunal do Júri representaria um passo na direção de um feudalismo moral são afastados sob o argumento de que a instituição do júri está inserida num espaço de livre movimentação político-constitucional.
A possibilidade e formatação da clemência têm origem no reconhecimento de que o Tribunal do Júri, como tribunal do Povo, é capaz de emitir atos de vontade, entre eles o ato de renúncia soberana à pena, que é a adequada classificação dogmática do instituto. A problemática admissibilidade de teses moral e juridicamente repulsivas - como a da legítima defesa da honra -, que se extrai dessa fundamentação, parece ser solucionável no âmbito da ética advocatícia - o que requer, todavia, um exame mais detido. O argumento do cavalo de Tróia - no sentido de que a renúncia à pena implicaria também a renúncia a um julgamento justo -, por sua vez, falha ao não compreender a distinção entre os princípios da democracia e do Estado de Direito. Enquanto o princípio democrático fundamenta a renúncia à pena, o garantístico assegura o respeito aos direitos individuais, incluindo a garantia ao devido processo legal.
É deste fundamento que se deduz a garantia constitucional à plenitude de defesa, de onde também se extraem dúvidas a respeito da constitucionalidade da vedação a uma segunda apelação em casos de condenação manifestamente contrária às provas dos autos. Para sanar esse problema, sugeri o acolhimento de uma possibilidade de despronúncia tardia por parte dos Tribunais de Justiça, cuja discussão merece mais aprofundamentos.
Ao fim de tudo, gostaria de retomar às considerações que deram início a esse texto. Como espero ter exposto, o argumento a fortiori do Min. Fachin não é capaz de convencer que a clemência seja um instituto vedado ao Tribunal do Júri. É, porém, um bom argumento. Bom, porque nos abriu um espaço para reflexão e crítica. Bom, porque nos deu a oportunidade para recolocar a discussão sobre o Tribunal do Júri em seu devido lugar: no debate sobre o papel do Povo na administração da justiça penal e suas consequências. Bom, enfim, porque belo.
Resumo
Main Text
INTRODUÇÃO
1. O QUE É O TRIBUNAL DO JÚRI PARA A CONSTITUIÇÃO?
1.1. O JÚRI COMO GARANTIA INSTITUCIONAL
1.2. O JÚRI COMO MANIFESTAÇÃO DIRETA DO POVO
2. O INSTITUTO DA CLEMÊNCIA NO JÚRI
2.1. A CLEMÊNCIA COMO RENÚNCIA SOBERANA À PENA
2.2. AS LIMITAÇÕES DO PODER DE DISPOSIÇÃO DO JÚRI SOBRE A PENA
CONCLUSÕES