Injustiça epistêmica
a prova testemunhal e o preconceito identitário no julgamento de crimes contra a mulher
DOI:
https://doi.org/10.22197/rbdpp.v9i1.788Palavras-chave:
Violência de gênero, Preconceito identitário, Ideologia patriarcal, Injustiça epistêmica, Injustiça testemunhalResumo
As estruturas patriarcais que ainda marcam a sociedade brasileira afloram na forma de diferentes espécies de violência contra a mulher. O conceito de injustiça epistêmica, concebido por Miranda Fricker, emerge como um importante referencial teórico para a compreensão dos impactos dos preconceitos identitários no julgamento de casos de violência contra a mulher, na medida em que explica as distorções na distribuição da credibilidade entre agressor e vítima. A partir desse marco teórico, corroborado pela revisão bibliográfica da literatura específica, o artigo desenvolve a hipótese de que as estruturas de poder forjadas pelo patriarcado se manifestam nas práticas epistêmicas, inclusive sob a guarida da pretensa neutralidade do discurso jurídico, gerando um desbalanço no grau de confiabilidade atribuído às mulheres e aos homens, no âmbito do processo penal, e culminando em graves injustiças como a impunidade do agressor e a culpabilização da vítima, com base em estereótipos de gênero. Busca-se, por meio dessa análise, responder ao seguinte questionamento: em que medida o “ouvinte virtuoso” idealizado por Fricker pode servir de parâmetro para guiar a colheita do testemunho de vítimas de violência doméstica e outros crimes contra mulheres? E, ainda, em que medida a adoção dessas práticas epistêmicas virtuosas pode contribuir para evitar a influência de preconceitos na avaliação da prova testemunhal, e, em última instância, para mitigar os perniciosos efeitos do preconceito identitário no Sistema de Justiça – considerando o poder simbólico ostentado pelo Direito?
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