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in Revista Brasileira de Direito Processual Penal
Cadeia de custódia da prova e investigações internas empresariais: possibilidades, exigibilidade e consequências processuais penais de sua violação
Resumo
Pretende-se com o presente trabalho, analisar as seguintes questões: seria possível e exigível a observância da cadeia de custódia dos elementos de informação advindos de investigações internas empresariais? Quais seriam as eventuais implicações de sua violação, caso se pretenda apresentar estes elementos em um posterior processo penal? Para responder a essas perguntas, realizaremos, inicialmente, um breve estudo a respeito das origens, formalidades e finalidades das investigações internas, que se encontram intimamente relacionadas aos mecanismos de autorregulação regulada e, em especial, aos programas de compliance. Uma vez se tratando, porém, de diligências promovidas em ambiente privado, sem contraditório judicial e com parcas regulamentações estatais, levanta-se, dentre outros questionamentos, o de como assegurar a rastreabilidade das fontes de prova nestes ambientes. Assim, após um estudo sobre o instituto da cadeia de custódia e de seus fundamentos, buscaremos analisar, a partir de uma metodologia dedutiva, de que forma pode ser assegurada a autenticidade e a integralidade dos documentos advindos das investigações internas e quais seriam os possíveis reflexos processuais penais da “quebra” da cadeia de custódia destas provas.
Main Text
Introdução
A observada ascensão das corporações a um patamar de protagonismo2 em diversos setores3, viabilizada pela globalização econômica e comunicacional4 e pela consequente aproximação dos mercados, trouxe consigo uma maior preocupação para com a chamada “criminalidade corporativa”5, cuja magnitude dos seus potenciais danos6 tem se mostrado cada vez mais evidente.
Contudo, constata-se que o Estado, por si só, encontra inegáveis dificuldades na regulação e fiscalização das atividades empresariais e mais ainda, na prevenção, investigação e persecução dos ilícitos cometidos no setor, o que se justifica, em linhas gerais, pela organização extremamente complexa que estas entidades assumem7, pela sua atuação em âmbitos muito técnicos e especializados e pela própria permeação do ambiente empresarial por uma cultura de máxima potencialização dos lucros, ainda que, em alguns casos, às custas da ética e da legalidade.
Neste contexto, os programas de compliance vão sendo desenvolvidos como instrumentos de “autorregulação regulada”8 com potencial para remediar as dificuldades supracitadas. Dentre os mecanismos dos quais normalmente dispõem, especialmente no que toca ao seu viés reativo, encontram-se os procedimentos de investigação interna, os quais, mediante a condução de diligências como a coleta de documentos físicos e digitais e a realização de entrevistas e de exames técnicos, visam, dentre outras finalidades, a apuração de fatos potencialmente ilícitos ou antiéticos que cheguem ao seu conhecimento.
Uma vez, porém, que se tratam de medidas investigativas promovidas por particulares e cujos fatos podem estar relacionados a uma investigação oficial ou a um processo criminal em curso ou iminente, inúmeros são os questionamentos levantados não apenas com relação aos possíveis excessos cometidos pelas empresas em desfavor dos direitos e garantias de seus colaboradores e demais envolvidos, mas também quanto à idoneidade das informações colhidas e à possível admissão e posterior valoração delas em um processo penal9-10.
O objetivo do presente trabalho se insere, assim, no específico escopo da cadeia de custódia da prova e sua eventual aplicação no caso das investigações internas corporativas. Para tanto, após um breve - porém necessário - estudo do conceito, das finalidades e dos procedimentos realizados nas investigações internas, bem como de sua relevância no âmbito dos programas de compliance, buscaremos responder às seguintes perguntas: é possível, exigível e de que forma ocorreria a observância da rastreabilidade das fontes de prova, quando elas forem provenientes de investigações internas? Em caso de resposta positiva, quais seriam as implicações processuais penais da violação desta cadeia?
Para tanto, faremos uso de uma metodologia dedutiva, tendo como premissas gerais a legislação, doutrina e jurisprudência em matéria de cadeia de custódia da prova, aplicando-as ao caso específico das investigações internas empresariais. Ao fim do trabalho, buscaremos demonstrar que apesar da imperiosidade da observância da cadeia de custódia dos elementos de informação advindos de investigações internas, eventuais vícios não impedirão a admissibilidade dos mesmos em processo penal, desde que a valoração deles seja feita em benefício exclusivo da defesa do Acusado, sem prejuízo de um exame judicial de fiabilidade das informações por eles apresentadas.
1. Das investigações internas empresariais
Conforme fora mencionado no tópico introdutório, as investigações internas se inserem, via de regra, no âmbito dos chamados “programas de compliance”, instituto que muito embora tenha recebido recente grande atenção doutrinária, tem suas origens na primeira metade do Século XX, no específico escopo da proteção da concorrência e do mercado de valores norte-americano. Segundo Adán Nieto Martín, em meados dos anos 40, o Departamento de Justiça dos Estados Unidos desarticulou um cartel de fabricantes de componentes elétricos, passando a exigir das empresas do setor, a implementação dos programas supracitados para a prevenção de condutas anticoncorrenciais11-12.
No âmbito do mercado de valores, porém, os programas de compliance remontam a um período ainda anterior, sendo que já nos anos 30, a Securities and Exchange Comission - SEC passou a exigir o estabelecimento de controles internos (self-policing) para fins de evitar o abuso de informações privilegiadas. Com isso, explica o autor que nos anos 50, grande parte das corretoras de valores e demais intermediários financeiros já adotavam estes mecanismos, os quais ganharam ainda maior destaque com os escândalos de Wall Street nos anos 80, quando passaram a ser exigidos pela SEC, de maneira generalizada, de todas as corretoras de valores mobiliários que operassem na bolsa13-14.
Contudo, foi no contexto dos graves escândalos financeiros da virada do século - tais como os observados nos casos Enron, WorldCom e Parmalat 15 -, e posteriormente com a crise dos derivativos de 2008, que a eficácia da “autorregulação” dos atores econômico-financeiros, de maneira livre de qualquer intervenção ou regulamentação estatal, passou a ser questionada, especialmente quanto à sua idoneidade para a prevenção de ilícitos16. Ganha fôlego, então, a ideia de uma “autorregulação regulada”, como contrapartida às políticas neoliberais e de desregulação que deram espaço às condutas ilícitas supracitadas, as quais a supervisão estatal não fora apta a evitar17.
Com as constatadas dificuldades encontradas pelo Estado para a realização de suas atividades de regulação, prevenção, investigação e repressão de delitos empresariais18, este passa a incorporar os entes particulares na realização dessas suas funções, as quais são para eles delegadas, mas de maneira vinculada e subordinada aos fins e interesses estatais19. Desta feita, nesta enforced self-regulation, o ente privado é demandado a definir seus próprios estandartes, os quais serão ratificados pelo Estado, quando consonantes à legislação pública, e cujas violações poderão ser punidas20.
É neste apontado contexto de efervescência dos ideais autorregulatórios, somados à cada vez maior necessidade de tutela dos direitos dos acionistas21, que os programas de compliance, em sua hodierna configuração, se inserem. Eles podem ser conceituados como uma ferramenta de autofiscalização e autorregulação empresarial, inserida na conjuntura da governança corporativa, que tem como propósitos imediatos a promoção de uma cultura de ética e de cumprimento normativo nas atividades empresariais, bem como a prevenção, investigação e repressão de práticas ilícitas neste ambiente. Mediatamente, busca-se a manutenção ou recuperação da boa-reputação da pessoa jurídica, a continuidade dos negócios com a potencialização de seus lucros e, principalmente, o resguardo da corporação, de seus colaboradores e de seus órgãos de representação, de eventuais responsabilizações nas mais variadas esferas, bem como de prejuízos financeiros e reputacionais22.
Podemos considerar que estes programas atuam em quatro “frentes” no âmbito corporativo, sendo elas: a I) frente regulatória - estabelecimento de normas internas, padrões éticos e de conduta, competências, procedimentos e demais instrumentos necessários para o bom andamento das atividades; a II) frente preventiva - visando obstar ocorrências que podem se mostrar prejudiciais à empresa, inclusive em termos de posteriores responsabilizações; III) a frente investigativa, referente às ocasiões em que a pessoa jurídica se vê na posição de apurar ocorrências potencialmente antinormativas que cheguem ao seu conhecimento; IV) e a frente reativa, composta pelos procedimentos “post-factum” do compliance, tais como as sanções internas e os mecanismos de revisão e melhoramento contínuo do programa23.
Uma análise pormenorizada e exaustiva de cada um dos mecanismos que compõem um programa de compliance restaria prejudicada, não apenas pelo fato de que eles dependem das particularidades de cada empresa e de seu ramo de atuação, bem como dos mais variados riscos penais aos quais estas estão submetidas24, mas também extrapolaria os limites temáticos do presente trabalho. A título exemplificativo, remetemos à classificação proposta por Engelhart, que divide as etapas da elaboração destes programas em três colunas, quais sejam: I) a da formulação, caracterizada pelo trinômio detectar - definir - estruturar, que engloba os procedimentos de identificação e análise de riscos, a aprovação de um código de ética e de outras normativas internas, a implantação de canais de denúncia e orientação e a definição das respectivas competências no âmbito do programa; II) a da implementação, definida pelo trinômio comunicar - promover - organizar, e composta pelas fases de divulgação do programa e treinamento dos colaboradores e de promoção cotidiana da cultura de compliance; e por fim, III) a consolidação e aperfeiçoamento, marcada pelo trinômio reagir - sancionar - aperfeiçoar, e que diz respeito aos procedimentos de investigação interna e sancionamento, bem como aos mecanismos de avaliação e melhoramento contínuo do programa25.
Como podemos observar, o objeto do presente trabalho se encontra na “terceira coluna”, mais especificamente no que toca à “frente investigatória” dos programas de compliance 26 . É fato que, por mais desenvolvidos e bem estruturados que estes mecanismos venham a ser em determinada empresa, eles não serão capazes de eliminar completamente os riscos de práticas ilícitas e antiéticas, sendo fundamental, portanto, que a estrutura de compliance esteja dotada de mecanismos que permitam a apuração dos fatos e de suas respectivas autorias.
As investigações internas podem ser conceituadas, assim, como o conjunto de diligências empregadas por uma determinada pessoa jurídica, com ou sem o auxílio de colaboradores externos contratados para tanto, as quais têm como uma de suas finalidades a apuração dos fatos que cheguem ao seu conhecimento e que apresentem indícios de violações legais, éticas e/ou de suas normativas internas. Cumpre destacar, porém, que estes procedimentos não se confundem com as atividades cotidianas de supervisão e tampouco com os procedimentos de due diligence, pois ao contrário destas, eles apresentam um inegável caráter reativo e não cotidiano27.
Conforme explica Scharnberg, muito embora as diligências individualmente consideradas sejam praticadas, a princípio, sem a participação das autoridades públicas, elas estão, via de regra, conectadas com investigações estatais ao menos iminentes, servindo, assim, para a compilação de informações que viabilizarão e fundamentarão as posteriores decisões a serem tomadas pela pessoa jurídica, em face dos fatos28.
Cumpre destacar que até pouquíssimo tempo atrás, estes instrumentos eram conduzidos sob o paradigma puro da autorregulação, no sentido de que, ao menos em matéria penal e processual penal, não havia regulamentações quanto aos procedimentos concretos a serem adotados pela empresa, salvo eventuais normativas em matéria laboral e societária29. Atualmente, porém, já é possível observar alguns esforços no sentido de viabilizar um maior controle sobre as concretas diligências conduzidas nesta seara. Estes empenhos ocorrem, por um lado, mediante a tentativa de delimitação - doutrinária30 e legislativa31 - do que pode ser considerado um programa de compliance eficaz para fins de atenuação ou isenção de responsabilidade penal das pessoas coletivas. Por outro lado, também observamos reflexos indiretos nas investigações internas, da expressa regulamentação das chamadas “investigações defensivas”32, tal como ocorre nos ordenamentos jurídicos norte-americano33 e italiano34, e que se encontra em fase de discussão no Brasil, através do Provimento 188/2018 do Conselho Federal da Ordem dos Advogados do Brasil 35 e do Projeto de Novo Código de Processo Penal36.
Devemos salientar, inicialmente, que não há uma obrigação de investigar, mas sim, um ônus37. Com isso queremos dizer que, ressalvadas eventuais exceções pontuais, não há uma imposição legal neste sentido, mas caso a empresa em questão não o faça, coloca em cheque não apenas a idoneidade e eficácia do seu programa, mas também a futura obtenção de eventuais “benefícios” processuais penais.
Em outras palavras, no que toca à implementação de programas de compliance ou da promoção de investigações internas, um dos primeiros questionamentos que são levantados diz respeito ao porquê do alto investimento que é feito nestes mecanismos, quando a pessoa coletiva não é obrigada a adotá-los e, mais ainda, quando a partir deles podem ser apurados elementos que levem à própria responsabilização da empresa ou de seus administradores.
Segundo Engelhart, existem seis níveis progressivos de influência estatal sobre as pessoas jurídicas, em termos de implementação de programas de compliance: I) a autorregulação, marcada pela abstenção estatal, em que os incentivos para a adoção destes programas viriam tão somente das potenciais benesses mercadológicas ou da exigência dos mesmos, para a participação em determinados mercados; II) o apoio informal do Estado, mediante treinamentos e outros incentivos, os quais podem advir, inclusive, a nível supranacional, sendo de suma importância não apenas quando direcionados às companhias propriamente ditas, mas também aos próprios Estados, pressionando-os a promover os programas; III) a recompensação do compliance, através, por exemplo, da abstenção de persecução penal em face de companhias que tenham um programa eficaz, ou da consideração destes na fase de sentenciamento; IV) o sancionamento das falhas ou da falta de compliance, que pode se consubstanciar no agravamento de penas eventualmente impostas ou até mesmo na determinação judicial da adoção de determinadas medidas ou de um programa completo; V) a exclusão da responsabilidade em razão do compliance, que se mostra um dos maiores e mais justos incentivos e vem sendo progressivamente adotada no âmbito da responsabilidade penal das pessoas jurídicas; e VI) uma obrigação geral de implementar programas de compliance, que seria o nível mais forte de incentivo, ainda mais se acompanhado de mecanismos eficazes de enforcement (através de agências reguladoras, por exemplo) e também de sanções. Essas obrigações gerais ainda não existem, podendo indicar um desconforto legislativo em interferir na liberdade negocial das empresas38. Contudo, obrigações setoriais são comuns, especialmente em searas nas quais a necessidade regulatória é mais evidente, tais como na do branqueamento de capitais39.
Ora, nos termos da classificação supramencionada, ressalvadas eventuais exceções setoriais, nas quais determinadas companhias possam ser legalmente obrigadas a promover investigações internas, a sua não promoção poderá implicar, de todo modo: na consideração da ineficácia do programa e em prejuízo da obtenção de recompensas processuais - nível III; no sancionamento da companhia - nível IV; ou na impossibilidade de exclusão de sua responsabilidade criminal, se for o caso - nível V.
Seja como for, a decisão sobre a promoção ou não de uma investigação interna recai, em regra, sobre os administradores da sociedade, podendo ser delegada à pessoa ou departamento responsável pelo compliance 40 . Seu impulso inicial, consubstanciado na chegada ao seu conhecimento dos fatos potencialmente ilícitos ou contrários às normativas empresariais, pode decorrer de uma comunicação interna - tais como uma denúncia mediante o competente canal ou uma suspeita advinda das atividades cotidianas de supervisão e controle - ou externa - como a promoção atual ou iminente de uma investigação estatal ou processo penal, comunicada diretamente à empresa ou noticiada na mídia41-42.
Ressalvadas as particularidades de cada pessoa jurídica e de seus respectivos setores de atuação, o procedimento das investigações internas tende a seguir um rito minimamente uniforme. Em um primeiro momento, é primordial a aprovação de um plano de investigação, o qual viabilizará a aferição prévia dos seus custos, tempo demandado e limites dos métodos empregados, os quais deverão ser aprovados pelo órgão responsável sob pena de ilegitimidade do procedimento ou da medida concretamente adotada43.
É nesta fase, aliás, que há a designação de um responsável interno pelo procedimento e é feita a opção pela contratação ou não, de profissionais externos. Essa escolha poderá levar em conta, muitas vezes, o interesse da pessoa jurídica em assegurar o sigilo das investigações, especialmente quando elas forem vinculadas a uma investigação estatal ou a um processo penal.
Isso porque, conforme já analisamos em outra oportunidade44, é bastante controversa a extensão do sigilo profissional aos chamados in-house lawyers - ou advogados internos -, levantando o questionamento sobre se estes gozariam de prerrogativas como a work-product-protection e o attorney-client-privilege 45 . Inclusive, o Tribunal de Justiça da União Europeia, em ao menos duas oportunidades, fez uma leitura muito restritiva destes institutos aos advogados internos, nomeadamente nos casos AM & S Europe v. Commission of the European Communities 46 e Akzo Nobel Chemicals Ltd. and Akcros Chemicals Ltd. v. Commission of the European Communities 47 .
Ainda que esses entendimentos tenham sido proferidos no âmbito concorrencial comunitário e que consideremos, ainda assim, bastante questionável a sua aplicação ao específico caso das atividades de compliance e investigações internas eventualmente executadas por advogados internos48, é fato que, diante da inegável controvérsia, pode ser feita a opção pela contratação de advogados externos, a fim de assegurar a confidencialidade das investigações49.
De todo modo, seja para os advogados internos ou para os externos, devem ser outorgados os respectivos e expressos poderes de mandato e firmados os competentes termos de confidencialidade dos envolvidos na investigação, com a finalidade de garantir a legitimidade, bem como de preservar o sigilo das informações coletadas, se for o caso50.
Feito isso, são iniciadas as atividades de investigação propriamente ditas, mediante a coleta de informações advindas de instrumentos de trabalho - tais como computadores e celulares corporativos -, condução de entrevistas, análise de documentos, gravações de áudio, vídeo e de arquivos digitais - dentre os quais, cadeias de e-mails, ficheiros da web e discos rígidos. Pode se fazer necessária também, a realização de perícias técnicas51.
Finalizadas as diligências investigativas, é apresentado um relatório final ao órgão interno ou pessoa responsável, no qual constarão as conclusões da investigação52. A destinação destas informações será decidida de acordo com os concretos interesses da corporação53, sendo que, caso identificadas práticas ilícitas ou contrárias às normativas internas, elas poderão: I) dar ensejo a sanções internas, tais como advertências, suspensões e demissões; II) serem resguardadas para a preparação e fundamentação da defesa da pessoa jurídica em posterior procedimento sancionatório (inclusive criminal) em que venha a ser implicada, apresentando as provas que entender cabíveis; ou ainda, III) poderão ser compartilhadas com as autoridades estatais competentes, para a respectiva incorporação destes elementos nas investigações oficiais e a possível obtenção, por parte da empresa, de algum dos benefícios supramencionados54-55.
É justamente desta última hipótese que decorrem alguns dos inúmeros questionamentos relacionados às investigações corporativas e seus possíveis aproveitamentos em processo penal. Primeiramente, porque neste espaço de verdadeira “privatização” das investigações56, não pode ser descartada a possibilidade de que empresas eticamente “questionáveis” conduzam essas diligências de maneira abusiva e desproporcional, violando direitos e garantias dos eventuais envolvidos, ou então, que haja uma tentativa de “direcionamento”57 do resultado das investigações para afastar a responsabilidade da corporação e de ocupantes de cargos hierarquicamente superiores58, em desfavor de colaboradores subordinados59.
Ademais, uma vez que no cerne destas investigações é coletado amplo acervo probatório, o qual, conforme salientamos, não necessariamente se limitará a tentar isentar a pessoa jurídica de uma sanção ou até mesmo evitar a instauração de um procedimento penal em face da mesma, mas também poderá apontar os responsáveis individuais pelos fatos investigados, a simples transferência dos resultados dessas investigações para as entidades estatais de persecução penal ou sua apresentação direta em juízo em conjunto com a defesa da corporação60, levanta grandes questionamentos sobre como compatibilizar esses procedimentos com as garantias processuais penais dos envolvidos, tais como o direito à não autoincriminação, ao contraditório e à presunção de inocência61-62.
O objetivo do presente trabalho se encontra, porém, em um terceiro ponto controvertido, qual seja, o de como garantir a fidedignidade dos elementos probatórios colhidos nas investigações internas, se estas são conduzidas, na maior parte das vezes, de maneira dissociada dos órgãos oficiais de investigação63. Em outras palavras, impõe-se o questionamento sobre se há meios para certificar que os elementos colhidos nestes procedimentos serão integralmente os mesmos que serão eventualmente apreciados em juízo, como meios de prova.
Parece-nos que a solução deste problema seria um pouco menos complexa, se a empresa não assumisse no processo penal, uma posição “bifronte”, no sentido de que, independentemente de ser acusada ou vítima no caso concreto64, ela poderá atuar visando tão somente infirmar os fatos que contra si são imputados, focando em uma defesa “passiva” ou “negativa”, ou poderá também atuar como uma longa-manus estatal, colaborando com os órgãos estatais de persecução penal65.
2. Cadeia de custódia da prova: conceito, fundamentos e relevância processual penal
A “cadeia de custódia da prova” pode ser conceituada como:
... um procedimento documentação ininterrupta, desde o encontro da fonte de prova, até sua juntada no processo, certificando onde, como e sob a custódia de quais pessoas e órgãos foram mantidos tais traços, vestígios ou coisas, que interessam à reconstrução histórica dos fatos no processo66.
Trata-se, assim, de um importante instrumento para a constatação da integralidade, identidade e autenticidade dos vestígios ou indícios delitivos, visando garantir a retidão do “caminho” percorrido até a conversão em evidência probatória. Cada pessoa que tivera contato com o elemento colhido se torna uma espécie de “garante” de sua conservação, razão pela qual é imperiosa a documentação deste percurso67.
É por essa razão, inclusive, que se fala na necessidade de observação da mismidad da prova, ou seja, de que aquilo que for submetido a juízo para apreciação e valoração, seja o mesmo que fora apreendido, sem contaminações, substituições, manipulações ou alterações68-69. Ademais, ao se viabilizar às partes uma maior rastreabilidade das fontes de prova, o Acusado consequentemente terá maiores possibilidades de aferir se essas foram obtidas dentro dos limites da legalidade, e em caso de resposta negativa, terá concretas condições de impugná-las, exercendo de maneira efetiva seu direito de defesa.
É neste sentido, inclusive, que Geraldo Prado sustenta a especial importância deste instituto frente à “vulgarização” do apelo aos métodos ocultos de investigação, tais como as interceptações e escutas telefónicas, os procedimentos de vigilância contínua e as quebras de sigilo70. Diante do elevado nível de intromissão destes meios na vida privada e de suas potenciais violações a direitos e garantias dos investigados - o que justifica, inclusive, a estrita regulamentação destes institutos -, mostra-se imperiosa a viabilização de controles epistêmicos no processo penal, visando assegurar que a admissão e valoração dos elementos colhidos sejam condicionadas à observação das hipóteses e procedimentos legalmente previstos.
Muito embora seja geralmente associada à prova científica laboratorial, a necessidade de documentação da cadeia é mais ampla e pode estar relacionada à qualquer fonte de prova “real”, uma vez que ela deverá ser coletada e levada ao processo através de um meio de prova, tal como a juntada de documentos ou a realização de perícias. Pode-se falar também, em cadeia de custódia de elementos imateriais, tais como registros eletrônicos, conversas telefónicas, e-mails, mensagens de voz, fotografias, vídeos da internet, dentre outros. De todo modo, mostrar-se-á necessário um rigoroso registro de todas as pessoas que tiveram os elementos de prova sob o seu poder físico, desde sua coleta até a apresentação em juízo71.
Uma vez podendo ser considerado o “princípio síntese” do processo penal, o devido processo legal se mostra como o mais básico fundamento da obrigatoriedade de observância da cadeia de custódia da prova72, englobando em seu cerne, as garantias a um processo desenvolvido perante um juiz natural, em contraditório e com respeito à ampla defesa, à presunção de inocência e à motivação das decisões73.
Mais especificamente, pauta-se este instituto, em primeiro lugar, na tutela do contraditório, designadamente com relação à própria obtenção extraprocessual da fonte de prova, viabilizando às partes, a contestação não apenas da sua legalidade, mas também dos métodos utilizados e de sua própria integralidade e credibilidade. Neste sentido, o desrespeito a determinado procedimento no momento da coleta, manipulação ou transporte do elemento probatório afetará sua fidedignidade, fato que poderá ser constatado e alegado pela parte interessada74.
Conforme explica Badaró, o contraditório é uma garantia processual fundamental, não apenas por viabilizar às partes o conhecimento e a reação aos atos que lhes sejam desfavoráveis75, mas também por permitir o funcionamento de uma estrutura dialética nas atividades processuais e consequentemente, exercer uma importante função heurística76, no sentido de ser uma garantia epistemológica que amplia os limites de conhecimento do julgador sobre os fatos relevantes e diminui as possibilidades de erros77.
Ora, e mesmo nos âmbitos em que há maior presunção de credibilidade das provas, tais como nas científicas e até mesmo nas digitais, é importante a observação de um contraditório duplo, qual seja, não apenas sobre o seu conteúdo propriamente dito, mas também quanto à sua própria admissibilidade, sendo ele pautado na possibilidade de controle da fonte de prova78.
Estritamente relacionada ao contraditório79, podemos também considerar a garantia à ampla defesa como um dos fundamentos do instituto aqui analisado. Conforme explicam Grinover, Gomes Filho e Scarance Fernandes, esses dois institutos estão intimamente interligados, uma vez que é do contraditório (visto em seu primeiro momento, da informação) que surge o direito de defesa, mas é esta, como correlata ao poder de ação, que garante o contraditório. Em outras palavras, a defesa assegura o contraditório, mas é também por ele que se manifesta e é garantida80.
No plano da rastreabilidade das fontes probatórias, já salientamos a importância da documentação da cadeia como, quiçá, a única possibilidade concreta do Acusado, de impugnar a coleta e o transporte dos elementos, bem como os métodos científicos empregados para tanto, apresentando, na oportunidade, as provas que entender cabíveis.
Neste sentido, conforme explica Geraldo Prado, o rastreamento da legalidade da atividade persecutória e o consequente repúdio aos possíveis excessos acusatórios só é possível, muitas vezes, com o conhecimento, por parte da defesa, da totalidade dos elementos informativos colhidos ao longo da investigação81.
Assim, a concretização de uma efetiva ampla defesa fica a depender, neste ponto, do acesso ao registro dos procedimentos e métodos empregados, bem como da cronologia e das pessoas que tiveram contato com as evidências, razão pela qual é fundamental sua conservação.
Um dos principais fundamentos reside ainda, na necessidade de controles epistêmicos na justiça criminal, controles estes instituídos pelo legislador através da definição de hipóteses de admissibilidade ou inadmissibilidade probatória, regramento da produção dos meios de prova, definição das hipóteses e limites dos meios de obtenção de provas e, residualmente, definição dos limites ao livre convencimento em reforço à presunção de inocência82. Na base desta pretensão se encontra uma epistemologia judiciária garantista, que busca assegurar um princípio de estrita jurisdicionalidade, que tenha como condições: a) a verificabilidade ou falsificabilidade das hipóteses acusatórias; e b) a sua prova empírica, mediante um processo que permita sua verificação e eventual refutação83. Porém, esses limites epistêmicos não bastam, mostrando-se também necessários limites legais à atividade probatória, para a preservação de valores não necessariamente conexos com a descoberta da verdade, mas sim relacionados à dignidade humana e às liberdades individuais84-85.
Em último termo, assim, a documentação da cadeia de custódia e os possíveis efeitos processuais de sua “quebra” visam assegurar que o direito subjetivo à prova não seja absoluto, uma vez que suas eventuais restrições, em última análise, asseguram o direito dos demais interessados, à uma prova corretamente obtida, produzida e valorada. Em outras palavras, “ao direito à prova corresponde, como verso da mesma medalha, um direito à exclusão das provas que contrariem o ordenamento”86-87.
Muito embora se trate de uma construção doutrinária e jurisprudencial de grande relevo no ordenamento jurídico norte-americano, caracterizado por seu procedimento adversarial e pelos mecanismos de discovery nas fases pré-processuais88, a cadeia de custódia da prova tem ganhado relevo legislativo também nos ordenamentos jurídicos de civil law. É o que se observa, por exemplo, no “Capítulo V” do Código de Procedimiento Penal de Colombia, que em seus Artigos 254 e subsequentes, regulamenta especificamente a cadeia de custódia89.
O ordenamento jurídico brasileiro também passou a prever expressamente a cadeia de custódia da prova no Código de Processo Penal, especialmente após as modificações inseridas pela Lei 13.964/2019 (Lei Anticrime)90. Em seus Artigos 158-A e subsequentes, observamos não apenas o conceito deste instituto, como ainda a regulamentação das etapas e de alguns procedimentos a serem observados91. É verdade porém, que a redação adotada pelo legislador fora bastante restritiva, seja por fazer recair a cadeia de custódia tão somente sobre “vestígios materiais”, nos termos do §3º. - desconsiderando, assim, toda uma sorte de elementos de prova imateriais que mereciam resguardo -, seja por seu silêncio quanto aos efeitos da não preservação da cadeia e ao momento processual de sua apreciação92.
Cumpre destacar que, quando usualmente se fala em violação ou “quebra” da cadeia de custódia, não é propriamente a cadeia que fora rompida, mas sim, a sua documentação. Em outras palavras, sendo a “cadeia de custódia”, propriamente dita, o conjunto de pessoas que tiveram contato com a fonte de prova e seus respectivos momentos específicos, ela não é passível per se de ser violada, mas sim, pode haver uma elipse no seu registro93.
Uma vez que sem essa documentação torna-se questionável a autenticidade e integridade da fonte, bem como e consequentemente, dos elementos de prova dali extraídos, ganha especial relevo no âmbito das investigações internas e do eventual aproveitamento em processo penal94, dos elementos nelas colhidos, o questionamento sobre como assegurar a inviolabilidade da cadeia de custódia quando, na base da descoberta das fontes de prova, encontram-se entes privados. Debruçar-nos-emos sobre esta problemática no tópico subsequente.
3. Rastreabilidade das fontes de prova nas investigações internas: possibilidades, fundamentos e eventuais implicações da sua violação
Conforme já mencionado ao longo do trabalho, de maneira idêntica à inexistência de previsões legais quanto à promoção ou não de uma investigação interna, há uma inconteste (e talvez justificada) lacuna no que toca aos eventuais deveres de documentação da recolha de evidências nestes procedimentos, constando estes, quando muito, nos manuais de compliance e demais normativas internas. Observa-se, porém, que apesar deste vazio legal, a documentação da cadeia de custódia da prova95 não apenas é possível, como já é observada e executada pela generalidade dos escritórios especializados neste âmbito, o que nos faz questionar quais seriam as razões de fundo para tanto.
A primeira dessas razões, ao nosso ver, diz respeito à submissão de muitas empresas, ao ordenamento jurídico norte-americano, por estarem listadas no mercado de valores local ou terem suas ações negociadas no “mercado de balcão” nos Estados Unidos, estando assim, submetidas às provisões da FCPA (Forreign Corrupt Practices Act) 96 . Ora, e sendo a cadeia de custódia, conforme já analisado, um instituto de primeira relevância neste sistema, uma eventual falta de cuidado por parte da pessoa coletiva, para com os registros das evidências por ela colhidas no âmbito de uma investigação interna, poderá prejudicar toda a estratégia defensiva da corporação em eventual processo em causa.
A segunda razão, intimamente relacionada com a supracitada, residiria no inconteste interesse empresarial na obtenção dos “benefícios” processuais já aqui analisados, os quais podem estar vinculados, muitas vezes, com a “utilidade” - do ponto de vista das entidades estatais de controle e persecução - dos elementos colhidos. Observa-se, por exemplo, que o Memorandum McNulty, do Departamento de Justiça dos Estados Unidos, prevê expressamente como um dos aspectos a serem considerados pelos Procuradores Federais, ao avaliarem o processamento ou não de uma pessoa jurídica, a sua voluntária e temporânea colaboração, sendo considerados como fatores negativos o atraso ou a incompletude no fornecimento dos dados97.
Ora, essa perspectiva de análise dos programas de compliance em seu viés de colaboração para com a administração da justiça - sendo na prática, o departamento de compliance, muitas vezes enxergado como uma espécie de “extensão” do gabinete dos órgãos de controle e persecução98 - impõe às pessoas jurídicas e aos seus responsáveis pelo cumprimento normativo e pelas investigações internas, uma inegável preocupação para com a fiabilidade das provas colhidas, uma vez que, ainda que elas não sejam legalmente obrigadas a observar a documentação da cadeia de custódia, sua quebra poderá prejudicar os benefícios almejados pela corporação.
Por fim, não podemos abstrair de que a cargo das investigações internas, especialmente das realizadas em corporações de grande complexidade, encontram-se grandes escritórios e empresas de renome, cujo valor reputacional é um vetor importante a ser considerado. Com isso queremos dizer que, ainda que não sejam legalmente obrigadas a tanto, as responsáveis pela condução das investigações internas tendem a ser zelosas para com a cadeia de custódia e sua respectiva documentação, uma vez que a credibilidade de seus serviços e até mesmo a eficácia do programa de compliance da empresa contratante estão em jogo.
Dito isso, surge o questionamento sobre como assegurar a inviolabilidade dos registros da cadeia de custódia de provas derivadas de investigações internas99. De maneira geral, observamos que as fontes de prova que apresentam potenciais maiores dificuldades são os exames técnicos (uma perícia em uma barragem ou em determinado equipamento da linha de produção, por exemplo) e os documentos digitais100, merecendo estes últimos, em razão de suas particularidades, maiores considerações.
As evidências digitais se destacam por sua imaterialidade, volatilidade, fragilidade101 e consequente facilidade de desaparecimento e contaminação102. Em outras palavras, há um grande risco de evidence dynamics, observada quando há alteração, realocação e obliteração da prova, ainda que involuntárias103. Essa contaminação, aliás, pode se dar não apenas pelo contato físico inapropriado com o dispositivo ou suporte físico que contém o dado, mas também digitalmente104.
O primeiro passo recomendado para prevenir uma contaminação no momento do exame é a realização de uma cópia integral do sistema a ser periciado (bitstream copy), uma vez que a análise do próprio original coloca em risco sua integralidade e autenticidade. Neste procedimento de cópia, deve ser utilizado um write-blocker, evitando que um sistema informático introduza ou altere dados em outro com o qual ele esteja conectado105.
Todas as cópias devem ser validadas com o chamado Hash, que é um algoritmo aplicado a um determinado input, gerando um output codificado. Ao ser aplicado a certos documentos ou conjunto de dados digitais, é criado um código alfanumérico que funciona como uma espécie de “impressão digital”. A aplicação do Hash ao mesmo conjunto de dados ou documentos gerará sempre o mesmo código, sendo possível, então, a partir dele, saber se houve ou não alteração nos dados analisados106.
Na análise das informações digitais, o investigador não poderá, ainda, abstrair da chamada metadata, ou “dados sobre dados”, que contêm informações muito importantes, tais como horário e data de modificação, pessoas que tiveram acesso ou que tinham permissão para tanto e até mesmo quem excluiu determinados arquivos107.
O National Institute for Standards and Technology propõe um modelo “quadripartite” para o procedimento de investigação em ambiente digital, consistente nas fases de I) recolha - que engloba a identificação, rotulagem e registro; II) exame; III) análise e IV) apresentação de relatório, o qual deverá necessariamente fazer constar cada passo relevante da investigação, tais como métodos, procedimentos, ferramentas, dentre outros108.
Desta sucinta análise e no que toca aos específicos interesses dos presente trabalho, é possível depreender que o especialista tem, no âmbito da obtenção de elementos digitais em investigações internas, não apenas o dever de colhe-los e manuseá-los de acordo com os procedimentos científicos aplicáveis, preservando sua integralidade e autenticidade, mas também a obrigação de registrar cada uma das etapas deste procedimento, para que constem os respectivos intervenientes, os específicos momentos de coleta e manuseio, os métodos empregados e o estado em que os dados foram obtidos. Essa documentação é fundamental no sentido de tentar assegurar a rastreabilidade destes elementos e viabilizar o acesso e eventual impugnação pelos interessados.
Estas considerações certamente serão válidas também para as demais espécies de evidências colhidas no âmbito de uma investigação interna, sendo que em cada qual, serão aplicados os respectivos procedimentos e metodologia científica, sendo crucial, em todo caso, a documentação e registro das etapas, métodos, cronologia e intervenientes.
Dito isso, observamos que não apenas é possível o devido registro da cadeia de custódia no âmbito das investigações internas, como também que se trata de uma diligência que já é observada nesta seara, ainda que sem determinação legal. Questiona-se, porém, quais seriam as possíveis implicações processuais penais da violação da cadeia. Em outras palavras, seriam admissíveis em processo penal, elementos de prova colhidos em investigações internas, cuja rastreabilidade estivesse prejudicada?
Nesse escopo no qual as fontes de provas são descobertas não por órgãos estatais, mas sim por particulares que têm especial interesse nos fatos que elas podem vir a corroborar, deve prevalecer de maneira ainda mais acentuada, uma lógica de “desconfiança” sobre as provas109. É por esta razão que, ao nosso ver, a quebra da cadeia de custódia das evidências advindas destes procedimentos privados, não pode ser considerada irrelevante no plano processual penal, especialmente se vislumbramos que, para além de seu uso na instrução da defesa corporativa, estes documentos poderão vir a ser utilizados para corroborar uma pretensão acusatória em face de terceiros, tais como funcionários e colaboradores da empresa.
Afastada, assim, sua irrelevância, há duas possíveis consequências processuais penais para as provas cuja rastreabilidade esteja prejudicada: I) a prova seria ilegítima (ou proibida)110 - e portanto, inadmissível no processo, devendo, se for o caso, ser desentranhada; ou então II) a prova poderia ser admitida, mas seria valorada de maneira atenuada a depender da situação111-112.
A doutrina majoritária, especialmente a brasileira, vai no sentido da primeira solução, sustentando haver uma ilegalidade que deveria ensejar inadmissibilidade ou, se for o caso, exclusão da prova viciada dos autos113. A recém aprovada Lei 13.964/19, conforme já salientamos, fora silente a respeito, havendo posicionamentos também, no sentido de que haveria nulidade pela não observância das regras relativas à cadeia de custódia, podendo, contudo, o órgão acusador - se for ele quem a produziu - comprovar que não houvera prejuízo e afastar a nulidade114. No ponto de vista da dinâmica processual, porém, uma vez que na maior parte das vezes a prova maculada já integrará o processo e o juízo quanto à sua ilicitude será feito a posteriori, não haverá diferenças concretas, ao menos no plano cronológico, entre o desentranhamento decorrente da inadmissibilidade e a nulidade115.
Esse posicionamento, porém, ainda que muito bem fundamentado na justificada preocupação de que provas de “baixa credibilidade” possam vir a influenciar a narrativa processual e possivelmente fundamentar uma condenação, enfrenta uma dificuldade adicional no específico âmbito que aqui analisamos. Conforme já sustentado ao longo do trabalho, as recentes tendências de “privatização das investigações” - escopo no qual inserimos, não apenas as investigações internas corporativas, quando analisadas sob o viés de sua potencial relação para com um processo penal, mas também as investigações defensivas como um todo - certamente potencializaram a possibilidade de que a quebra da cadeia de custódia seja ocasionada não pelos agentes estatais de investigação, mas sim, pela própria defesa e seus investigadores privados.
Neste caso, se por um lado o vício poderá recair sobre um elemento potencialmente prejudicial ao eventual Corréu, por outro, poderá ser relativo a dado fundamental para a defesa da pessoa jurídica e até mesmo das pessoas singulares eventualmente implicadas. Dito isso, seja qual for a solução adotada - de inadmissibilidade ou não - podemos nos questionar sobre qual seria a resposta para o caso em que a ilicitude ou irregularidade ocorresse em prova favorável a um ou mais Acusados. Poderia ela ser admitida e valorada?
Ora, a partir do segundo entendimento doutrinário exposto acima, qual seja, o da admissão da prova e eventual atenuação de sua credibilidade na fase de valoração, a solução mais adequada seria a de remeter este juízo para o âmbito da valoração da prova, especialmente nos casos em que haja irregularidades ou omissões leves, sem indicativos concretos de substituição, adulteração ou modificação da fonte de prova. Mas também nas hipóteses mais contundentes, com vícios mais graves e maiores dúvidas quanto à autenticidade ou integridade da fonte de prova, esse juízo seria feito pelo julgador, de maneira mais rigorosa, no momento da valoração116-117.
Os fundamentos desta linha, conforme explica Badaró, residiriam no entendimento de que as irregularidades na cadeia de custódia não seriam suficientes para ensejar a ilicitude probatória, uma vez que essa documentação da cadeia não seria a “prova” propriamente dita, mas sim, uma “prova sobre a prova”, cuja finalidade não seria a de demonstrar a veracidade ou falsidade das afirmações sobre os fatos, mas sim, assegurar a autenticidade e integridade da fonte da prova118.
Ainda que considerados os riscos dessa opção, a remessa dessa avaliação para um momento posterior viabilizaria ao julgador uma apreciação da gravidade e extensão da “quebra”, das dúvidas que ela eventualmente enseja quanto ao elemento probatório e do concreto valor a lhe ser atribuído. Essa liberdade de apreciação, se por um lado poderia gerar um receio de eventuais arbitrariedades e redução da segurança jurídica, por outro, seria uma imperiosidade decorrente da maior participação ativa da defesa nas investigações, impedindo que esta viesse a ter inadmitidos elementos probatórios que poderiam lhe ser favoráveis. Ademais, não podemos nos abstrair do fato de que, em razão da imperiosidade da motivação das decisões, o concreto valor atribuído a um meio de prova cuja cadeia de custódia fosse violada certamente deveria constar da decisão e, em sendo o caso, poderia ser impugnado através dos competentes recursos.
Caso assim entendêssemos, as normas referentes à cadeia de custódia e sua documentação seriam, na linha da supramencionada categorização proposta por Costa Andrade119, regras sobre a própria produção da prova, sendo que sua eventual violação faria diminuir sua credibilidade mas não implicaria necessariamente em ilicitude probatória e consequente inadmissibilidade ou proibição de valoração, devendo ser ela devida e motivadamente valorada na sentença.
Vale ressaltar, contudo, que ainda no escopo desta segunda corrente de pensamento, são feitas algumas ressalvas no que toca à digital evidence. Segundo Gustavo Badaró, a desmaterialização e a facilidade de mutação dos elementos de prova digital justificariam a adoção de uma solução diversa, vez que se os métodos adotados na obtenção e produção desses elementos não forem fiáveis, eles não gozarão de qualquer potencial epistêmico, não possuindo aptidão para comprovar qualquer fato. Para o autor, “num sistema que respeite a presunção de inocência, não se poderá exigir do acusado a demonstração do prejuízo pela não utilização das melhores práticas segundo a computer forensics, devendo a prova ser destituída de valor probatório”120.
De fato, no caso da produção de provas digitais por parte da Acusação, não nos parece ser adequado impor ao Acusado o ônus de demonstrar a violação ou inexistência de documentação da cadeia de custódia, bem como o prejuízo decorrente da não adoção das melhores técnicas na coleta, exame e análise desses elementos ou na elaboração do relatório. Contudo, remanesce nosso questionamento principal, relativo às hipóteses de produção de provas pela própria defesa, com vícios de rastreabilidade.
Para esses casos, é interessante observar que no âmbito da primeira corrente doutrinária mencionada anteriormente, qual seja, a que se posiciona no sentido de que a quebra da cadeia de custódia ensejaria a ilegalidade e consequente inadmissibilidade e desentranhamento da prova, encontramos posicionamentos que se inclinam pela admissão e valoração destes elementos probatórios quando em favor dos interesses da defesa.
Neste sentido, conforme explica Geraldo Prado, ainda que a disciplina constitucional brasileira nesta matéria não viabilize entendimentos como o de que toda prova ilícita pro reo seria admissível - tornando a exceção em regra - ou o de um juízo de proporcionalidade121 para aferir a possibilidade ou não, do emprego da prova ilícita em desfavor de alguém, isso não significa uma proibição de controle da antijuridicidade quando haja um conflito de interesses122.
O autor nos relembra que em sendo o processo penal constitucional uma garantia do imputado contra o arbítrio estatal, não há uma posição de perfeita simetria entre este e o Estado investigador e acusador, de maneira com que, em havendo um conflito entre interesses constitucionalmente tutelados, será imprescindível, no caso concreto, a intervenção jurisdicional para aferir a excepcional possibilidade de admissão da prova em favor da comprovação da inocência e da liberdade do Acusado123.
Assim, em definitivo, haveria uma excepcional não-correspondência entre a proibição de ingresso e a proibição de valoração da prova, podendo ela ser eventualmente valorada, mas com emprego único e exclusivo em favor da defesa124 e nunca em desfavor de outrem125.
Os reflexos deste entendimento nas conclusões às quais podemos chegar quanto à cadeia de custódia, são os de que ainda que seja imprescindível a sua preservação a partir do momento de sua apreensão ou apresentação a órgão oficial, a prova poderá ser apresentada por terceiros, estando sujeita, é claro, a uma valoração de sua fiabilidade em caso de quebra da cadeia, ou seja, sujeita a uma “prova sobre a prova”126.
Diante de todo o exposto, não poderíamos chegar a outra conclusão que não a de que a prova coletada no âmbito de uma investigação interna, que eventualmente possua um vício de rastreabilidade apto a configurar uma “quebra da cadeia de custódia”, poderá ser admitida em um processo penal - ainda que em caráter excepcional - desde de que sua valoração seja feita única e exclusivamente em favor da defesa127 e nela seja aferida a sua fiabilidade. Jamais poder-se-á admitir a sua valoração para fundamentar a condenação de alguém.
Duas questões ainda restam, porém, sem solução minimamente pacífica. A primeira delas diz respeito a quem incumbiria o ônus de comprovação da retidão da cadeia de custódia, problemática essa que é controversa também no caso das evidências derivadas das investigações estatais e muito mais o será, no caso das investigações internas. Por um lado, poder-se-ia aplicar um regime próximo ao das nulidades e incumbir àquele que alegou o vício, a tarefa de comprova-lo. Esta solução, contudo, parece-nos que inviabilizaria, em muitas hipóteses e em especial no plano das investigações internas, a demonstração concreta da violação, uma vez que, quem produzir a prova é que possuirá as melhores (se não as únicas) condições para demonstrar sua integralidade, podendo ser dele este ônus128. Ademais, não podemos nos abstrair de que estamos aqui, no plano de uma “prova sobre a prova”, e não no da comprovação dos elementos típicos129. Assim, mesmo na hipótese de que essa incumbência recaia sobre a defesa, que promovera a investigação da qual decorrera a prova viciada, não nos parece que esta solução afronte as suas garantias processuais. É certo, porém, que esta questão impõe maiores discussões.
Outro ponto controvertido é o do standard probatório necessário para demonstrar a “quebra” da cadeia de custódia - ou sua “integralidade”, no caso de atribuição do ônus à parte que a produziu. Conforme explica Badaró, a doutrina norte-americana vai no sentido de não ser necessário o afastamento de toda e qualquer possibilidade de alteração ou substituição, mas tão somente, a demonstração do que for suficiente para que julgador possa crer que a prova é aquilo que sobre ela é afirmado. Nos casos em que a cadeia não for “facilmente identificável” ou for muito vulnerável à alteração, exige-se um grau maior de demonstração, a um patamar de ao menos uma probabilidade razoável de sua integralidade130. Se por um lado, observa-se de pronto que estes critérios são extremamente vagos e abrem grande margem para discricionariedade, por outro, diante do silêncio legislativo e doutrinário a respeito desta questão nos sistemas de civil law, estes critérios podem ser tomados como ponto de partida para as futuras e necessárias discussões sobre este controvertido aspecto.
Conclusão
Conforme restou demonstrado ao longo do presente trabalho, os programas de compliance são desenvolvidos como uma potencial resposta às dificuldades estatais de regulação e fiscalização das atividades empresariais, bem como de detecção, prevenção e repressão de ilícitos cometidos nesta seara complexa e bem estruturada. Neste escopo, ainda que não imperiosamente vinculados com estes mecanismos, os procedimentos de investigação interna exercem uma importante função reativa no cerne corporativo, visando, mediante a condução de diversas diligências, a apuração de fatos potencialmente ilícitos ou contrários às suas normativas internas e que possam ensejar prejuízos econômicos e reputacionais, bem como responsabilizações das pessoas coletivas e singulares implicadas.
Observamos, contudo, que essa tendente “privatização das investigações” levanta inegáveis questionamentos, especialmente se considerado o eventual aproveitamento em processo penal, dos elementos colhidos nessas diligências. No estudo em apreço, analisamos especificamente uma destas problemáticas, qual seja, a da cadeia de custódia das provas advindas de investigações internas e as possíveis consequências processuais penais de sua violação.
Importante instrumento para assegurar a rastreabilidade e, consequentemente, a fiabilidade e legalidade das provas apresentadas em juízo, pudemos constatar que o registro da cadeia de custódia da prova, ainda que sem expressa imposição legal para tanto, já é observada pela generalidade das entidades responsáveis pela condução de investigações internas, seja pelos benefícios processuais penais almejados pela empresa objeto da investigação - que a fazem se preocupar com a utilidade dos elementos colhidos nestas diligências, especialmente se ela estiver submetida ao regime da FCPA - seja pela própria preocupação com a reputação da empresa contratada e com a eficácia do programa de compliance da contratante.
O especialista terá, portanto, no curso das mais diversas diligências a serem empregadas, o dever de, não apenas empregar os competentes métodos científicos para a recolha, transporte e análise de cada um dos elementos colhidos, a fim de preservar sua integralidade e autenticidade, mas também de fazer constar do imperioso relatório, o registro da cada uma das etapas e da cronologia destes procedimentos, com as respectivas pessoas que neles interviram, viabilizando assim, o acesso e eventual impugnação de todas e cada uma das fases do processo empregado.
Eventual elipse nestes registros poderá acarretar em menor fiabilidade do elemento probatório, o que deverá ser considerado aquando de sua eventual apresentação em processo penal. Contudo, a despeito da ilegalidade ocorrida, ele poderá ser excepcionalmente admitido e valorado no processo penal, desde que única e exclusivamente em benefício da defesa do Acusado e de sua liberdade. Trata-se de uma solução que não apenas viabiliza ao juiz a análise da extensão dos concretos impactos da quebra da cadeia de custódia no caso concreto, como ainda impede que eventuais problemas de rastreabilidade em provas coletadas pelo Acusado, no cerne de suas investigações defensivas, impliquem em prejuízo para sua ampla defesa.
Resumo
Main Text
Introdução
1. Das investigações internas empresariais
2. Cadeia de custódia da prova: conceito, fundamentos e relevância processual penal
3. Rastreabilidade das fontes de prova nas investigações internas: possibilidades, fundamentos e eventuais implicações da sua violação
Conclusão